domingo, 6 de junho de 2010

Rua do Lavradio

Rua do Lavradio, 106.
Ali começou minha vida.
Ali meus pais entraram casados, sob promessas de amor e chuvas de arroz em julho de 1970. Eu cheguei em 1972. À entrada da portaria, no piso, tinham minúsculas pastilhas, amareladas pelo tempo, encardidas, pé direito alto; o prédio construído, mais ou menos em 1898, foi precursor do estilo art decó, que só viria acontecer 2 décadas mais tarde. Tinha na entrada original grades retangulares e paredes talvez de um mármore meio rosa, meio verde, em direção ao bege bahia. Exisitam 3 elevadores; um deles, eu nunca vi funcionando. Dos outros dois, um era reformado, mas já velho, com placas de acrílico no teto e galalite nas paredes, branco gelo, quadradinho, muito barulhento. O elevador do meio, bem antigo, original, mas lento e silencioso, com a grade pantográfica manual, tem ainda uma cor escura, melancólica, o qual deve guardar muitos segredos. Lembro que em minha meninice, peralta que só, prendi o pé entre a porta pantográfica e o vão do elevador... Foi-se meu tênis bamba novinho da escola... mas foi só susto. Apesar de não ter meu cordão umbilical enterrado no poço dos elevadores, como dizia minha mãe em relação ao meu pai, que também nasceu ali, trago as melhores lembranças daquele prédio. Ontem eu sonhei com ele. Sonhei com ele e com os finados moradores que ainda conservo vivos em minha memória e coração. Num estado de semi inconsciência consciente, eu fui lembrando de cada morador, de cada apartamento. Hoje de manhã eu acordei e decidi que iria visitar aquela rua, aquele prédio. Rua do Lavradio. Me deu um aperto no peito, só isso foi o suficiente pra pegar o carro e ir até lá. Antes de meus pais casarem, meus avós e bisavós viviam ali. E depois de mim, meu irmão e primos. Nunca entrei na lixeira do prédio, nem na casinha da portaria, tinha medo. Lembro que era comprida, estreita, luz fraca, e tinha um cheiro quase asfixiante de gás, tinham medidores enormes, de cima embaixo, eu achava que dava choque, e dava mesmo, pois também havia ali os medidores e fusíveis de luz. A portaria, como disse, era grande, um caixote quadradão; no fim, a escada para o 1º segundo andar, sim, o segundo andar contava os apartamentos 101 ao 116, o terceiro andar, contava os apartamentos 201 ao 216 e o quarto andar, contava 301 ao 316... Os apartamentos eram todos duplex, muito chique para a época, as unidades da frente, contam com uma diminuta varandinha, acho que posso chamar de "guarda-corpo". No vão entre os blocos interligados tinham embaixo clarabóias gigantes, com ventilação e iluminação laterais, que davam para o Correio da Manhã ou como conhecido depois de um tempo, a Tribuna da Imprensa. Os corredores são largos, claros, compridos, com o chão em cerâmica vermelha. A escada interior do prédio, em caracol... Não sei que estilo é esse, mas é tão inusitado um tipo de escada dessas, e pra mim, tão natural.

Tem estudantes de arquitetura que visitam de vez em quando o prédio, pois a escada se sustenta quase que por si só. Os degraus, também são em cerâmica vermelha, antiga. Em duas ocasiões eu morei lá. Eu nasci no 316 e fiquei até uns 6, 7 anos e depois eu voltei com 13 ou 14 anos para o apt. 215 e saí da casa de minha mãe aos 18. Mas depois dessa idade, eu ainda frequentei o prédio, e muuuito. Meus tios viveram lá por muitos anos, e eu, claro, por osmose, também. Tia Armida, que morava no 210, veio para o nosso 215 e Tia Lamia, que morava no 205, trocou de apartamento com dona Maria, vindo ficar no nosso lado, no 214. Pude acompanhar muito de perto, o nascimento e crescimento dos meus primos e afilhados, Felipe e Priscila que vi, assim como eu mesma, engatinhar e dar os primeiros passos no corredor de chão vermelho.

Tio Fausto também morou ali, no 209, mas como era militar, viajou pelo Brasil todo; e Tio Alceu também morou, no 303. Ali, meus dois primos começaram a namorar... espíritos afins, que nasceram na mesma família, com o intuito de não se perderem um do outro. Eu acredito assim. Eu jogava bola e futebol de botão no chão do corredor da Lavradio... com meu irmão, primos e amigos do prédio. Nossos joelhos e pés viviam encardidos do vermelho velho da cera... De pequena, ficava sentada no patamar da escada caracol, no meu andar, olhando as pessoas se movimentando nas casinhas da vila ao lado. Será que elas me viam? Eu pensava que o mundo todo girava a partir daquele ponto...

Época de natal, dava pra ver a estrela da Mesbla, toda enfeitada na Cinelândia. Dava até pra ver as horas do relógio, só que de trás pra frente... ACM e a Catedral... Eu gostava dali. Final de semana, calmaria, sossego e bicicletas, patins, piques, futebol, vôlei... De segunda à sexta, turbilhão das grandes cidades, carros, pessoas... Av. Chile, prédio da Petrobrás....

Minha escola pública, na mesma rua, Celestino da Silva... Silvio Santos estudou lá, muitos anos antes, é claro! Eu ia pro trabalho a pé... Eu e todos que moravam lá e trabalhavam em qualquer lugar do centro da cidade. Era bom. Todo mundo podia almoçar em casa. Eu ia pra IBM à pé. Era muito bom!!! Quantas vezes eu subia e descia aquelas escadas quando o elevador quebrava. Eu fui feliz ali. Em dia de festa, o corredor virava play, uma extensão do apartamento, já que em regra, todas as famílias se conheciam, e deixavam a porta aberta. Éramos uma grande família. A maioria conhecia meu pai desde pequeno e portanto, todos eram meus tios, além dos tios de verdade. Era bom! Então, hoje eu voltei lá, depois de tantos anos. Ruth, a moradora mais antiga, ainda está lá! Mudou-se em 1938 para o apartamento de uma atriz de teatro que tinha ido para a Espanha, chamada Graça Moema, amiga da família Bittencourt, donos do jornal Correio da Manhã. Ruth conserva a memória viva de cada personagem do prédio. Ela conheceu meu Bisavô Adelino, que trabalhava no fotolito do jornal; minha bisavó Rosária Fiori, que era decoradora; meu avô Milton dos Santos, que era repórter fotográfico do jornal, que cobriu vários episódios históricos no Rio e depois foi para o jornalismo esportivo, podendo ser visto fotografando jogos de futebol no Maracanã, atrás do gol, no Canal 100. A Ruth viu meu pai nascer, assim como presenciou meu nascimento, do meu irmão e primos. O prédio da Rua do Lavradio 106 foi construído para acomodar os funcionários do jornal, por isso, meu bisavô morava lá... Então, eu acordei com esse saudosismo nostálgico que se instala no coração dos românticos, mas essa melancólica sensação infelizmente me mostra que aquela época não existe mais. Fui ao prédio... Dimas, o antigo porteiro, está de férias. Um outro me interpelou... hããã? Pra onde eu vou? Fala sério, nasci aqui... e subi as escadas na esperança de me ver criança, correndo com os meus, pelos corredores compridos... Tinha a esperança de ouvir o barulho dos meus pés descalços, estalando contra aquele chão vermelho. Os gritos e as risadas do Waltinho, Rodrigo e Bruno, correndo de medo quando a bola batia na porta da dona Marocas... Nada. Não havia nada, além de vazios e saudades... Que mania estranha, tentar reviver o que já passou. Mas foi bom. Eu precisava ir. Precisava caminhar onde eu dei meus primeiros passos em direção à vida. Foi bom abraçar a Ruth e ouvir dela histórias que eu não conhecia. Faz bem rever nossa origem. Amei. Eu já acompanhei pessoas em busca de um pouco de seu passado e vivi tais momentos como se fosse comigo, como se eu tivesse feito parte da história de outrem... imagina a minha própria? Foi bom abraçar o Jules. O resgate é proveitoso; faz parte do nosso auto-conhecimento. Foi bom. Mas foi uma pena ver o prédio tão abandonado. Passei por todos os andares, todos os corredores, passei na casa da Ivana, da Iracema, da Dinda, da Helena e do Totonho... e uma cachoeira de lembranças infindáveis passou em minha cabeça, com toda velocidade. O prédio está praticamente vazio, apenas 3 famílias que eu conheço desde pequena vivem lá. Logo agora que a Rua do Lavradio foi recuperada. Eu nunca poderia imaginar que um dia a Lavradio pudesse virar point da noite carioca, ou que virasse pólo cultural de boêmios, artistas, turistas... Tem hoje 26 bares/restaurantes, feiras de antigüidades, antiquários famosos, clubes de leitura e rodas de samba e chorinho. Que pena que o Correio da Manhã / Tribuna da Imprensa não tem mais a importância que teve nos anos 50.

O Correio da Manhã protagonizou verdadeiros embates na época da ditadura militar. O Correio da Manhã era um jornal que pregava a liberdade e combatia a corrupção e a censura. Derrubou João Goulart, e outros, era como uma pedra no sapato dos militares. O jornal sofreu muitas represálias e após o atentado que culminou o AI-5, os donos, da família Bittencourt foram presos e asilados. O jornal foi opositor e marcante, de 1901 à 1974, quando infelizmente fechou suas portas. O prédio foi separado do jornal. Eu tinha 2 anos, mas ainda lembro das bobinas de papel e das fotos que meu avô fazia. A Rua do Lavradio foi um marco na história político-social do Rio de Janeiro. Ali, Conde D'Eu construiu a loja maçônica Grande Oriente do Brasil, bem em frente ao prédio e na rua existiram 6 grandes teatros da época. A escola Celestino da Silva foi, anteriormente um teatro, Apollo, até a década de 20. Ali viveram grandes nomes, como Marquês de Cantagalo, Marquês de Olinda, João Caetano, André Rebouças, Vieira Souto, entre outros... mas sabe de uma coisa? Mais do que esses personagens que viveram parte de suas vidas naquela rua, eu nasci ali!

6 comentários:

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  2. Andreia,

    Este prédio não seria o projetado pelos Irmãos Roberto? Se for o prédio é modernista e foi concluído em 1939.

    https://maps.google.com.br/maps?q=lavradio+106&hl=pt-BR&ie=UTF8&ll=-22.910582,-43.18284&spn=0.000868,0.00142&hnear=R.+do+Lavr%C3%A1dio,+106+-+Centro,+Rio+de+Janeiro,+20230-070&t=h&z=20&layer=c&cbll=-22.910497,-43.182875&panoid=mWEeaOJ7f8RR4dUfpiWkeQ&cbp=12,195.26,,0,-23.37

    Em seu (os Irmãos Roberto) primeiro edifício habitacional localizado na Rua do Lavradio no 106, no centro do
    Rio de Janeiro, em 1939, já se evidencia a possibilidade de abertura de um mercado onde a
    Arquitetura Moderna pode se inserir, otimizando a quantidade de apartamentos possíveis de
    serem alocados no terreno. Este edifício organiza-se em quatro barras paralelas, com altura
    de seis pavimentos ou três níveis de apartamentos duplex, dispostas ao longo da testada do
    lote, que se unem com a circulação principal lateralmente. Entre os blocos, são deixados
    espaços vazios de ventilação, ao redor dos quais é disposta uma circulação secundária que
    dá acesso aos apartamentos, formando um pátio em ‘U’. Os apartamentos são células
    compostas por sala e pequena cozinha no piso de acesso, e dois quartos com banheiro no
    pavimento superior.O acesso principal no nível térreo, comum a todas as unidades, é
    realizado pela lateral, liberando a frente para a localização de lojas. Observa-se a matriz
    figurativa da fachada com balcões provavelmente inspirados no prédio de apartamentos de
    Mies Van der Rohe e J.J.P. Oud em Weisenhof, Stuttgart, ou no bloco dos dormitórios no
    edifício da Bauhaus por Gropius (1929)

    http://www.docomomo.org.br/seminario%206%20pdfs/izaga-docomomo-2005-MMM.pdf

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  3. oi andrea,meu nome é joceia scarpati de bittencourt e meu marido é neto do paulo bittencourt que foi dono do correio da manhã e herdeiro desse predio onde vc nasceu.fiquei feliz por vc ter sido tão feliz aí abraços

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  4. Andrea, quem me indicou seu Blog foi a Marah e eu estou emocionada com o que li aqui. Este prédio pertenceu à minha família, bem como o do Correio da Manhã, etc.
    Hoje estou morando nele e sou sindica. Pretendo restaurá-lo por completo e já estou começando a fazer algumas reformas.
    Por acaso você possui alguma foto em que mostra ao menos um pedaço da fachada do prédio? Gostaria muito de mantê-lo o máximo possível do original.

    Beijos e obrigada :)

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  5. Nesse prédio, durante muitos anos trabalhou meu Pai, Manoel Gomes da Costa, o Maneco para uns e Manoelzinho para outros, excelente fotógrafo é vencedor de um Prêmio Esso de Jornalismo. Quando criança fui várias lá, na linotipia, nas prensas, na redação, no laboratório fotográfico e claro, no terraço.
    Belos tempos, belos días ...

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