quinta-feira, 26 de abril de 2018

http://antonianodiva.com.br/efemerides/e-preciso-deixar-ir-embora/ - 455 DIAS QUE MEU IRMÃO SE FOI

E hoje, faz mais um mês sem você, Waltinho. Quanta dor, quanta saudade, como dói.
455 dias que você partiu, 457 dias desde meu último abraço, meu último beijo... Dor.
Lendo sobre luto, para entender e viver meu luto, encontrei esse texto lindo, que re-posto aqui. Um relato de uma irmã, que também ama muito o seu caçula.

Obrigada, Antônia.

http://antonianodiva.com.br/efemerides/e-preciso-deixar-ir-embora/


É preciso deixar ir embora

Posted on 10 de novembro de 2015
Autor: Antônia no Divã - 57 comentários
 

Eu começo esse texto pedindo desculpas. Não pelo silêncio dos últimos dias, esse tão necessário durante meu luto. Mas à todas as pessoas que de alguma forma eu ofendi ou fui insensível ao escrever o texto “É preciso ir embora“. Algo que se deve entender aqui, é que eu sempre estive na posição de quem partiu, tão cheia de expectativa rumo a novas aventuras, e por isso não entendia em profundidade a dor de quem fica no porto ou aeroporto abanando em saudade – todo tipo de saudade. Hoje, no entanto, eu passo a entender a dificuldade de não ter perto dos olhos, quem mora no coração. E eu tive que aprender a me despedir da forma mais dolorida e irreversível. Não suficiente, tal lição veio através da pessoa que eu mais amei e amo nesta vida.

Há um mês eu perdi meu irmão. Encontrei-o inconsciente após o que indicava um mal súbito/convulsão, e depois de tentativas de soprar toda a minha vida pra dentro dele, minha ilusão dissipou-se ao ouvir meu pai, anunciando com a voz desesperançosa, que ele havia partido. “Morreu”, disse em choque. E com apenas uma palavra, um verbo estranhamente conjugado no passado, uma parte de nós, do nosso presente – de tempo e de Deus – também se foi. Rasguei minha garganta em gritos de discórdia e desespero. Era como se naquele instante o tempo tivesse parado, ressaltando cada detalhe da falta de sorte que nos esmagava contra o chão. Abracei minha mãe enquanto ela implorava para eu dizer que aquilo era uma mentira. Nunca vou me esquecer dos olhos dela, antes tão cheios de amor, e ali naquele momento, vazios. Um gosto amargo tomou conta da minha boca, da minha vida. O Leonardo havia ido embora pra uma viagem sem volta, cujo destino eu não tinha visto de entrada. Com o meu coração sangrando nas mãos, chorei por não ter me despedido, e desde então não se acordou um único dia que não tenha sido regado a lágrimas de saudade.

Eu nunca falei do Leonardo aqui por dois motivos bem sinceros. Diferentemente de mim, o Léo sempre foi muito comedido – nada como a irmã que nunca teve papas na língua pra tornar o privado, público. E eu sempre respeitei isso. Além do respeito, a incapacidade de traduzir em palavras o que meu irmão significa pra mim. Já soltei o verbo sobre minha mãe, pai, sobre os irmãos gêmeos, minhas melhores amigas. Nunca sobre o Leonardo, e talvez apenas para o Leonardo. A dificuldade possivelmente está no fato de que ele personifica (ainda no presente) todos estes papéis. Meu irmão, meu melhor amigo, meu responsável, meu pupilo, meu protegido, meu confidente, meu filho, meu pai. Minha alma gêmea. Alguém cujo meu coração sempre bateu em sintonia, desde os primeiros anos da infância. Dono do meu amor maternal e fraternal coexistindo. Guardião da melhor parte de mim. Ser feliz ao lado do meu irmão sempre foi fácil. E se eu fui destemida a vida toda, era porque com ele ao meu lado, eu nunca tive nada a temer. E isso tudo mudou.

O luto da maior perda da minha vida trouxe a urgência de aceitar uma despedida sem qualquer preparo e em praça pública. Com sua partida tão antecipada e não anunciada e tendo ele passado mal dentro de casa – vieram as perguntas. “Como e por que ele foi embora?” e nós não sabíamos responder, ninguém sabia. Muito embora o Léo tivesse passado mal outras duas vezes neste ano, ambas resultando em convulsões, nenhum exame apontava qualquer alteração ou falência. A causa declarada no óbito como indeterminada, potencializou nossa dor, fez ecoar a nossa impotência frente à fragilidade da vida e alimentou uma culpa irracional constante – “o que aconteceu?”; “por que não deu tempo de fazermos mais exames?”; “como podíamos tê-lo salvo?” e lógico “queria ter ido no lugar dele”. Frente à falta de respostas, não demoraram muito para os abutres levantarem suas hipóteses infundadas, fomentadas pela curiosidade mórbida do ser humano e completo desconhecimento da pessoa que meu irmão era – uma pessoa alegre, bondosa e inteligente. Um futuro psiquiatra promissor, vivendo possivelmente a melhor fase da sua vida através da formatura de medicina no mês de dezembro, o início de uma bolsa de PhD, um visual novo lindo que finalmente combinava com sua personalidade e as novidades alegres trazidas pela maturidade. O meu irmão era a favor da vida, e fã nº1 da dele, e ouvir falácias supondo o contrário neste momento de despedida foi como perdê-lo duas vezes.

O aviso do ocorrido postado pela família no seu perfil do Facebook foi dito “mal escrito” e “inadequado” – agora me explica, existe jeito certo? Tem etiqueta ou tutorial para este tipo de despedida? Com que estrutura (de texto ou emocional) se notifica o fim da vida de um amor? Em meio ao nosso drama, ainda houve quem reivindicou viuvez de forma pública, sem nunca ter conhecido meu irmão, num ato desesperado de 15 minutos de fama em cima da dor alheia, para uma plateia de desinformados que bateu palmas para um amor que nunca existiu ou existiria – ao menos não aquele, eu é que sei. Era como se em meio à partida do meu irmão, tivéssemos ficado encarregados de toda a bagagem que ficou pra trás, não dele, mas impertinentemente a dos outros. Tudo tão público e incompatível com generosidade do meu irmão. Logo ele que preservava tanto sua privacidade e a dos outros. Eu me culpei por falhar com meu irmão no fim de tudo – eu fui calada pela dor da perda durante dias e não consegui protegê-lo de todo e qualquer mal, ainda que tratando-se de sua memória.

“Você sempre sabe como cuidar de mim”, o Léo me disse dias antes de partir. E talvez seja por isso que eu esteja tão perdida agora. Minha vida ganhou sentido no dia em que o Leonardo nasceu, e como irmã mais velha me pareceu linda a tarefa de sempre zelar por ele. E eu zelei. Quando puxava a cama dele pra perto da minha quando ele tinha medo de dormir sozinho. Quando saímos de casa juntos, para habitar um lugar neutro durante o divorcio dos nossos pais. Quando fiquei ao seu lado após uma cirurgia, para só sairmos do hospital se fosse juntos. Quando ele teve dúvida em relação a fazer e seguir com a medicina. Estive ao lado dele pra dar mijada e pra brigar quando ele não se cuidava – única razão pela qual a gente brigava. Para dar apoio em qualquer decisão. “Irmã” (como ele me chamava) sempre foi o meu título mais honroso e que definiu quase tudo do meu caráter até hoje. A minha existência sem a do Leonardo, me parece uma incoerência da vida, um engano do destino. É como se eu fosse um par de meias que perdeu o pé esquerdo – sem propósito, guardada numa gaveta escura. Uma porta trancada sem a chave.  “Avião sem asa, fogueira sem brasa”. Como ressignificar?

“É preciso deixar ir embora” – Frase proferida diversas vezes nos primeiros dias de luto, antes repetida como um conselho maldito, e hoje, ordem para o meu primeiro passo.

E é preciso deixar ir embora.

Hoje começo a entender que mais difícil e importante que aprender a ir embora, é aprender a deixar alguém partir. Seja essa partida temporária, com reencontros confortantes. Seja uma partida eterna, como a do meu irmão. E sei que só existe UM conforto para toda e qualquer separação – viver intensamente as pessoas que amamos durante o tempo que se tem. A ordem é nunca deixar nada pra trás. O Léo foi coautor de cada uma das minhas histórias. Eu vivi intensamente o meu irmão. Amei-o todos os dias da minha vida, disse e demonstrei esse amor, mesmo quando discordávamos. Eu celebrei o Leonardo a cada conquista, e ajudei-o em cada tombo. Então veja, eu não tenho nada pra me arrepender do nosso tempo juntos, porque ele foi aproveitado com cada batimento do meu coração.

Hoje também sei que o aprendizado de deixar ir embora é um período solitário, intransferível e demorado.  Haverá de deparar-se com a separação – temporária ou permanente – e obrigatoriamente fazer dela um período de ressignificação pessoal. Não importa a quantidade de pessoas que te rodeie, existirá por um bom tempo uma solidão latente, pois a ausência de qualquer pessoa – como a do meu irmão –  não pode e nem nunca será substituída. É intransferível porque por mais que meu pai, minha mãe, ou mesmo meus irmãos pequenos, estejam passando pela mesma perda, a nossa conexão com o Leonardo é única, e desta forma cada um de nós sente a dor e a saudade de uma forma também muito singular.  E não existe “tratamento” rápido. O processo anda a passos de formiga, todo dia é um desafio e o tratamento visa minimizar os sintomas da dor, mas nunca cura.

Ainda que solitário, intransferível e demorado, permitir que outras pessoas estejam por perto dando apoio, é talvez o único jeito de tolerar esse momento de adaptação e ressignificação. E aqui não haverá surpresas – eu vivi isso – você saberá sem nenhuma dúvida, quem vai te ajudar de verdade, seja com o ombro, com o colo ou simplesmente compartilhando do teu silêncio. E fomos sortudos em ter uma legião de anjos ao nosso lado durante o último mês, nos segurando sempre que a dor foi mais forte, e por eles temos uma gratidão que não pode ser traduzida em palavras.

Hoje sei que deixar ir embora é importante em respeito aos objetivos de quem está de partida ou quem já partiu. Se for por vontade, destino ou “porque Deus quis” (“aspas” aqui porque ainda estou de mal com Ele). Ir embora é etapa importante da vida de uma pessoa, e sei que não cabe a ninguém questionar as razões. Aprendi que não posso ser âncora na evolução pessoal ou espiritual de ninguém. E também sei que essa despedida não pode ser uma âncora na minha vida – não porque devo qualquer coisa ao meu irmão, mas porque a felicidade é um compromisso que eu assumi comigo mesma há muito tempo, o que sempre foi motivo de orgulho pra o Leonardo.

É preciso deixar ir embora porque tudo na vida é transitório, e eu confio no tempo – e somente nele – para me ajudar a conviver com a dor da saudade.  Entendo que não existe outro caminho que o caminho do meio – não tem como desviar ou contornar esta etapa de despedida/luto, é preciso encarar todas as suas fases. E para estes momentos não almejo ter força, mas coragem – porque viver além da despedida, exige coragem permanente. E aqui reforço o pedido de desculpas que fiz no início deste texto, se minimizei ainda que sem querer, a complexidade de uma despedida. Porque é preciso coragem para quem vai e também para quem fica. Então sempre que houver medo, dúvida ou tristeza – e vai acontecer muitas vezes – que minha família, eu e todas as pessoas que precisam, possamos ter coragem para perseverar.

É preciso deixar ir embora. Nas etapas da vida, e também na passagem para o outro lado – passagem essa, que talvez seja a única, que todos nós já temos reservada.

Fim da sessão.

Nota para o meu irmão:

Leuo, eu sei que tu não lias o meu blog (“eu não quero ler tuas sacanagens!”) e que tu deve ter coisas mais importantes pra fazer onde tu estiveres. Lamento “quebrar nosso sigilo”, mas falar em ti passou a ser a única forma de te sentir mais perto – então eu ainda vou falar muito em ti. Esse com certeza não é o texto que tu merece, e creio que eu jamais serei capaz de escrever algo a tua altura. Ainda assim que fique registrado aqui também, que foi o maior privilégio e honra estar ao teu lado neste plano e te agradeço por ter me escolhido para esta viagem – curta sim, mas cheia de amor e lindas memórias. Agradeço também porque sei que, assim como em outras viagens que fizemos, tu vais reservar os melhores lugares aí em cima, para o dia que estivermos lado a lado outra vez. Até lá, vou acumular milhas de felicidade e bondade por nós dois. Eu prometo.



Antônia também é um pouco de mim...
Léo, também um pouco do Waltinho.
Curioso o quanto essa postagem me tocou, lá no fundo do coração. O amor é o mesmo, do tipo divino, lindo e único, especial.
Como eu te amo, meu irmão. E como eu sei que esse amor é verdadeiro, assim como Antônia e Leo, Andreia e Waltinho e tantos outros irmãos que foram separados da vida, sem a gente entender o "porque". Fica com meu amor, meu irmão... meu bebê, a melhor parte de mim, meu primeiro amigo, minha mais preciosa herança. Te amo sem fim.

Andréia descobrindo que tinha um irmão que era "só dela".
setembro 1974

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