terça-feira, 8 de maio de 2018

Cancão - 08 de maio de 2018

Oi Cancão, hoje é seu dia. Embora eu não tenha tido muito tempo pra pensar, lembrei que se você tivesse neste mundo, seria o momento de se ver com mais idade... 67 anos, você faria hoje. Mas não saiu dos 59. Dos 59, não vivi os seus primeiros 20... mas ainda bebê, sim, presenciei seus 21. Com você, eu cumpri meus 38... e com eles me despedi. Minha primeira grande perda - mas como se perde quem nunca se teve?  Eu não sabia o que ainda estava por vir. Nem poderia imaginar que quem busquei para sua despedida - esse sim, seria meu grande pesar.

Fazendo uma rápida análise, vi que dos meus 38 anos, 9 foram compreendidos em família (eu tinha pai, mãe e depois dos 3 anos, irmão - meu maior presente). Então foram 9 anos de pai e mãe e 6 anos de irmão + pai + mãe. Eu... durante esses anos, pensei que a vida fosse perfeita e feliz. Não sabia o que era o mundo, o que eram as necessidades dos aprendizados humanos. Com a idade que você foi pai, eu voei para o outro lado do mar, desbravei limites que você nunca chegou. Você andou, andou, andou e não saiu do lugar (em vez de andar, eu penso que você cavou, cavou, cavou um buraco tão grande em volta de si, que acabou ficando lá embaixo, e não tinha mais como voltar). Mas eu te dei as chances que você nunca me proporcionou. Me dispus durante toda minha vida e me indispus no momento da sua partida. Eu fiz o meu papel, eu estive ao lado de quem deveria - mas que nunca esteve ao meu. Não me arrependo, mas talvez hoje, não faria de novo, ou até faria, porque não sou inclemente. Posso ter vindo do barro, mas não sou barro. 

A mensagem que eu gostaria de te enviar, agora é um bilhete vazio, em branco. Talvez esteja errada - talvez, não. Quem sabe ainda esteja com raiva - e por que não? Sou gente, sou carne, sou sentimento. Talvez eu tenha direcionado à má sorte do Waltinho à você... e quê? Vai me assombrar? Vai puxar meu pé quando estiver dormindo? Não tenho medo de você - nunca tive - nem aos 14 anos, imagina aos 46? Mas trago em mim uma mágoa que me afoga. Não por mim, não por você, mas pelo Waltinho. Ele sofreu o seu desamor muito mais que eu. Eu gritei, esperneei, fui à luta. Waltinho esperou de ti o que você nunca teve para nos dar. Ao mesmo tempo, sinto em mim, uma pena em relação ao que você deveria ter sido e não foi, poderia ter feito e não fez. É uma mescla de sentidos infindos. Não sei...  misturo tudo e vejo que não dá em nada... nunca vai dar, nem daria.

O destino se mostrou infeliz refletido nesse espelho. Não sei o que deu errado, não sei porque viemos família. O véu do esquecimento nesses momentos me irrita. Onde foi que todos nós erramos e nos perdemos na experiência terrena que chamamos vida? 

Quando você se foi, pensei que muito tempo ainda tardaria, até ter que sentir o vácuo da perda, a surdez que invade os ouvidos, a mente, tudo vira turbilhão. Durante um bom tempo, te tive presente em minhas memórias diárias, e também em minhas orações. Acredito que apenas eu e minha avó fazíamos orações por ti. Ninguém mais o fazia - nem mais o Waltinho, quiçá o Victor. Walter secou de tristeza e decepção, e o câncer acabou por sugar-lhe a saúde com a rapidez dos ponteiros do relógio que serviu de herança. Lamento.

Depois do final de  maio de 2016, sua memória apagou-se com a mesma intensidade que acendia em meu peito, o clamor pela vida do Waltinho. Não consigo explicar, não se aplica em meu vocabulário esclarecer o sentimento que tive - ou não - por você. Simplesmente sua existência deixou de ter sentido. Talvez seja o momento, talvez amanhã eu acorde e sinta saudade do pai que nunca tive. O herói que nunca foi o mocinho da história. São tantas nuances, tanta coisa dentro de mim, que preciso parar de pensar, para não enlouquecer. Mergulho nas atividades, no trabalho, engulo o choro contido e preso na garganta, sigo adiante, vamos produzir... vida que segue;  tem muito mais coisa interessante no mundo que tentar decifrar porque você foi quem foi... por simples  escolha de não querer ter sido bom pai.  Mesmo que sua inexistência faça de mim uma filha sem pai... dói-me muito mais ser uma irmã sem seu caçula. Talvez você tenha tido culpa, sim... talvez não. Mas eu posso colocar a culpa em você, porque eu lembro nas conversas com o Waltinho, a dor do desprezo nas palavras dele. Eu te amei. Nós te amávamos, e de você só tivemos escarnio. O tempo passou, o que deveria ter sido feito e não foi, não tem mais volta. 

Sabe o que me dá vontade de rir num momento desses? E me dou esse direito de enlouquecer de vez em quando? É ver que seu nome foi apagado, por quem hoje come nossa herança. Malandro acha que é malandro, mas sempre tem um malandro mais malando que o malandro. Se ferrou, Cancão. O que você tirou de mim, do Waltinho e do Victor, é sustento de gente que não tem nada a ver com a gente. E agora? Diz aí? Tem como voltar e desfazer o barro que você fez? Eles nem lembram de onde vem a comida que comem... enquanto isso, meu irmão é comido em terras estranhas, eu fico na retaguarda, tentando proteger quem me restou. E você, como está? Onde está? Hoje eu lembrei de você.


Andréia Sieczko


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