terça-feira, 2 de novembro de 2010

Ensaio sobre a morte - 02/11/10

Hoje faz 1 mês que ele se foi... Ainda, com o corpo quente e inerte sobre a alcova, sua cena final, sua verdadeira e veredita alcova dos leões, senti que iria necessitar descrever aqueles momentos. O que será descrito aqui, não será uma história de amor, não terá um final feliz, portanto, se a morte lhe chocar, opino que mude de post, porque vou precisar expurgar pensamentos, fatos, sentimentos e ressentimentos... de maneira nua e crua, da mesma forma que encaro minha vida, mas vou precisar escrever. Eu, aos 38 anos, ainda não havia perdido ninguém da família... e por mais que eu soubesse que momentos assim chegariam (e ainda chegarão), ainda que eu soubesse exatamente todos os passos administrativos que deveria seguir, ainda sabendo todos os detalhes do corpo, jazendo sem vida, o tanto que estudei sobre a cronotanatognose forense à època da minha faculdade... ainda que estudiosa da continuação da vida após a morte... ciente e crente que a mesma não acaba neste plano, mesmo sabendo que o espírito é imortal... eu me deparei com ele sem vida: o forte, o inatingível, o grande, o audaz, o esperto, o malandro... morto. Dia 03/10, logo após setembro acabar... a vida já estava tão difícil... era dia de eleição, tinha combinado de levar meu tio querido para votar... acabara de ter um AVC e eu ainda temerosa de perder meu porto seguro, havia marcado de levar meus tios ao Centro da cidade, e depois, quem sabe dar um pequeno passeio, visitar parentes... ia ficar o dia com eles. A chuva fina denunciava que o dia inevitávelmente não teria sol e as ruas já borbulhavam com bocas de urna a cada esquina. Eu estava me arrumando, sozinha em casa e o telefone tocou... De um número desconhecido, uma voz me deu a notícia: ...seu pai está morto, morreu dormindo... vou pra aí... desliguei o telefone; minha visão escureceu-se por segundos intermináveis... calma, tenha calma, disse para mim mesma mentalmente... meu corpo tremeu, onde está minha camisa? O que eu havia separado minutos antes para vestir? Calma, calma, não é hora de desespero, não posso... Acabei vestindo a calça jeans e a blusa que havia usado no dia anterior, mas tive o insight de calçar algo bem confortável... o dia vai ser duro, pensei... parecia que mais alguém (dentro de mim) me ajudava naquele momento... tantas coisas passando pela cabeça... será que ele está morto mesmo? Será que não está vivo ainda? Perdi dentro de casa o celular que havia acabado de tocar, fiquei dando voltas em torno de meu próprio eixo, aérea, mas sem chorar... onde estão as chaves? Minha bolsa? Casaco? E saí de casa, ainda sem ligar pra ninguém, o dia frio, uma onda branca e colorida no verso, de papéis quadradinhos ao chão, as colas eleitorais, centenas de pessoas a minha frente, e eu não enxergava ninguém... abri o carro, mãos frias e o coração a mil por hora... calma, não atropele ninguém, tenha calma, não adianta correr, a voz falava comigo em pensamento... o trânsito, um caos! Ainda aqueles motoristas de domingo... pra piorar, perdidos como peru de véspera, sem saber de que lado da rua ficar. Pra quem vou ligar? Para meus tios, preciso desmarcar o encontro. Falei com minha tia, ex cunhada de meu pai, que de tão sensibilizada pelo AVC do marido, chorou instantâneamente ao ouvir o que eu tinha a dizer... Tia, não fale com ninguém ainda, deixe que eu ligo para minha mãe e irmãos... A tia, só chorava... chorava também porque já estava há dias guardando seu choro... eu também estava por causa de meu tio, mas aquele ainda não era o momento. Liguei para Recife... ninguém atendia, celular desligado... liguei para o celular do meu pequeno sobrinho e o telefone mais inusitado foi atendido... reclamei, pôxa, estou tentando ligar... e a voz do meu irmão me fez lembrar a de meu pai. Waltinho, seu pai morreu. A gente já esperava, a gente sempre acha que espera... mas a realidade quando bate à nossa porta é outra. Meu pai havia passado 1 mês em Recife com ele, acho que pra dizer adeus... Andréia, estou indo para o Rio, vou comprar a passagem, está indo pra onde? Eu indo pra lá, não consigo acreditar até que eu o veja... a chuva engrossou e fazia barulho no teto do carro. Liguei para minha tia Renata, irmã de meu pai, ela estava com minha avó. Preciso abastecer, estou sem gasolina... moço, enche o tanque, por favor. Até então, havia se passado 10 minutos... Ali eu parei, ali eu pensei, ali eu lembrei a tão pouca importância que tive na vida de meu pai. Fiquei furtivamente absorta em pensamentos, olhando na rua os carros passarem, carreatas, gente passando... o frentista abaixou a cabeça na porta do carro. Era um senhor moreno, calvo, parecia meu pai. Estendeu a mão para entregar a chave e num impulso eu agarrei sua mão, olhei para o crachá pendurado no uniforme e com os olhos marejados disse: meu pai morreu... olhei novamente o crachá e disse seu nome, José Rosa, meu nome é Andreia... meu pai morreu e ele não foi um bom pai. Mas eu estou indo lá, eu preciso ir lá, cuidar de tudo... e lá, eu não vou poder chorar, preciso cuidar dos meus irmãos, preciso tomar a conta da situação... estou dividindo com você esse momento. Me desculpa por pegar em sua mão. Mas eu precisava falar. Eu temo, pois meu pai não foi um bom pai e estou temerosa por ele, pelo filme que deve estar passando frente aos seus olhos espirituais neste momento... mas me sinto no dever de estar com ele agora. O senhor perguntou se eu estava bem, acho que ficou preocupado, queria que eu descesse do carro, mas eu estava bem. Só precisava daquele momento ali, sequei meus olhos e fui... chorei duas lágrimas com um desconhecido que me estendeu a mão. No caminho, consegui falar com minha mãe, afinal eles foram casados. Poderiam ter feito 40 anos de casados em julho último, mas minha mãe só aguentou 11 anos... O que você vai fazer lá? É a última chance de você dar as costas à ele, já que ele nunca fez nada por vocês... Mãe, você tem toda a razão, mas eu preciso ir. É algo mais forte que eu. Eu preciso ir... Notei que minha mãe ficou decepcionada... mas eu precisava ir, eu tinha de estar lá. O trânsito estava um horror, mas eu estava amortecida... estacionei o carro na calçada e perguntei ao porteiro qual era o bloco, por onde eu entrava; não tinha o costume de ir à casa dele. Subi 4 andares de escada, passei pelo pessoal do corpo de bombeiros e SAMU; a porta estava aberta e passei direto pela sala, em direção ao quarto. Ali, eu senti meus ouvidos surdos, senti um silêncio devastador, não sabia se aquela visão era real ou não. Ele jazia sobre a cama, coberto com um lençol fino. Não havia mais ninguém no quarto, somente eu e o corpo de meu pai. Então ali eu pensei: morreu-me o pai! Morreu-me o pai. Eu não tinha a menor idéia do que era ver um pai morto. Nunca tinha visto o meu em tal situação... Será que vou chorar? O que será que vou fazer? Tudo e todas as perguntas rodeavam minha cabeça. Retirei o lençol por inteiro, da cabeça aos pés... olhei seu rosto, peguei em seu braço, em sua mão... estava quentinho! Chamei imediatamente por Deus, pedi que Deus enviasse seus anjos, nossos amigos espirituais. Rezei. Eram 10:22h. Sentei-me na cama e me pus a conversar com o Cancão... assim eu o chamava. Quase nunca o chamava de pai. Pai de quem? Pai pra quê? Pai, por quê? Meu irmão Walter pegaria o vôo das 12:00h, Victor Hugo, nosso irmão caçula, é irmão por parte de pai. Eu e Waltinho somos filhos do casamento dos então, tão jovens Nina e Valter. Casaram-se com 17 e 19 anos, respectivamente... Victor estava vindo do quartel, já estava a caminho e contei isso ao meu pai. Cancão, você fez a passagem... você não faz mais parte do "mundo dos vivos", mas você não morreu. Só está do outro lado da vida... Mas acima de tudo, você não está sozinho... eu estou aqui, Victor está chegando, e Waltinho está vindo de Recife. Eu estou aqui do seu lado, estou aqui com você. Não tenha medo, eu estou aqui. E aí desse lado, você tem amigos espirituais para lhe ajudar nesta nova etapa de vida... e chamei por meus bisavós, meu avô Milton e pela minha querida e amada Iracema. A vizinha que viu meu pai menino e que me viu nascer. O espírito mais evoluído que tenho ao meu lado, com certeza. A primeira vez que ouvi sobre reencarnação e sobre a lei da causa e efeito, foi pela pessoa dela, eu era criança e não entendia o que ela falava, mas hoje, consigo lembrar de cada palavra, e pela bondade da Cema, sei que ela nos orienta desde o mundo espiritual. Eram 12:00h e meu irmão Victor chegou... ficamos no quarto, os 3... calados. As pessoas ligavam eu ligava para os parentes e amigos de meu pai para avisar sobre a morte. Alguém da casa já havia acionado a PM para a perícia criminal, procedimento de praxe em caso de morte súbita... tudo o que eu tinha estudado em minha monografia sobre medicina legal... Claro que eu liguei para minha mestra e amiga Zuleika. Ela me deu apoio na morte de meu pai, no IML. O dia de eleição conturbou demais o processo de retirada do corpo do Cancão em casa, pois todo o efetivo policial estava de sobreaviso eleitoral. A PM não vinha, estava demorando muito e ao olhar o relógio às 12:30h, tinha já comigo a certeza que o enterro não seria no mesmo dia... Ok, eu pude pensar em várias coisas ao mesmo tempo e nesse pensar, cheguei à conclusão íntima, que seria melhor que meu pai ficasse deitado naquela cama, velado por nós, enquanto seu corpo não iniciasse os passos da putrefação. Os livores cadavéricos ainda não haviam se manifestado visualmente aos leigos, mas seu corpo começara a ficar frio... a rigidez era a próxima manifestação do corpo. Mas pensei no Waltinho... por pior que fosse ver o pai morto, era melhor vê-lo e despedir-se com ele ainda "fresco" e fora dum caixão... então, não fiz muito alarde. Eu conversei com meu pai todo o tempo, rezava e conversava com ele... eu sabia que ele poderia estar ali... e realmente creio que estava, pois do nada a campainha da casa tocou e a porta foi imediatamente aberta, mas não havia ninguém no corredor... e o meu irmão Victor, um católico firme, que estava com o corpo no quarto, depois me contou que o meu pai fez um ruído, como um leve suspiro. Pra mim, aquilo foi o Cancão tentando fazer um sinal... E eu brinquei: Cancão, já está querendo brincar de assustar a gente! Quem estava na casa se assustou, quem me via conversando com ele, achava que eu estava louca... mas eu estava bem. Eu conversava, rezava e sentia que não estava só. Eu sabia que algo mais estava acontecendo em outra dimensão... Minha cunhada vinha com um copo de água com açucar... mas eu não estou nervosa, cunhada! Eu estou bem... mas já estava cansada e depois de um tempo, eu me deitei na cama, ao lado do corpo do homem que nesta vida foi meu pai. Fiquei deitada de lado, com a cabeça apoiada em meu cotovelo e braço, conversando com ele, descansando minhas pernas; já era hora de ir buscar o Waltinho no aeroporto, então falei baixinho: Cancão, vou no aeroporto com o Vini, buscar o Waltinho, o Victor está aqui com você, já volto, não demoro, não saia daí e sorri pra ele. Acho que o pessoal pensou que a loucura estava a minha volta, mas o Cancão sempre foi fanfarrão e divertido e sempre disse que não queria choro no enterro dele. Aliás, ele sempre dizia que queria morrer num fim de semana de sol, pra estragar a praia de todo mundo, que queria ser enterrado no São João Batista pra ficar mais próximo à praia, de sunga, claro, e que não queria ser levado no carrinho... queria ficar lá no alto do cemitério e ficaria rindo da gente, levando o caixão na mão e derretendo com o calor, e dividindo o peso do corpo dele, que sempre foi fortinho! Ele queria em seu enterro, riso e piada! Ri de novo e saí. No aeroporto, abracei meu irmão que não via há tempos, mas que converso sempre ao telefone... E ao chegarmos à casa de meu pai, ficamos com ele, os 3 filhos, no quarto. Após meu irmão ver seu pai, voltei minha energia para a PM... era hora de dar seguimento aos trâmites... Um colega de trabalho, que é PM e trabalha na segurança dos diretores da empresa, ligou para o batalhão e solicitou em seu nome ajuda para mim, acelerando o processo de retirada do corpo, que já estava em rigidez cadavérica e assim, um pouco antes do rabecão chegar, já de noite, quase 21:00h, fechei a porta do quarto... meu pai morto e seus 3 filhos... as únicas 3 coisas certas que ele fez de bom e pras 3 pessoas que ele deveria ter sido, e nunca foi bom... aos pés da cama, em pé, Waltinho, Victor e Andréia, se abraçaram e rezaram em voz alta. Eu disse: Valter, aqui estão seus 3 filhos... estamos aqui nesse momento de passagem, com você; que Deus tenha misericórdia de sua alma, que a cada um seja dado, segundo as suas obras... Que você encontre paz, agora daqui, não podemor mais ir com você. E perante os pés do pai, os 3 filhos se abraçaram. Foram preciso 8 pessoas para levar o Cancão... 2 bombeiros, 2 vizinhos, Victor, Walter, Vini e eu. Ajudamos a ensacar o corpo pesado e rígido... eu já sabia que no dia seguinte não daria para fazer velório, eu sabia... mas o velório foi ali, com os 3 filhos dele. Em pleno século XXI, houve um velório em casa, no Rio de Janeiro. Descemos as escadas com o corpo e ainda hoje, um mês depois, ainda sinto 1/8 do peso do corpo dele em minhas costas... Foi árduo, foi chocante, mas foi necessário. Assim como é necessário pra mim escrever tudo isso aqui... talvez, agora eu esqueça os detalhes daquele dia. Ao depositar o corpo na gaveta do rabecão, eu ainda lhe disse em pensamento: a partir daqui, você vai sozinho, Cancão. Vá com Deus. Subimos, pegamos minha bolsa, casaco, capacete e viemos para minha casa... Passamos no Extra, compramos whisky pra bebermos o defunto, eu não bebo, mas meus irmãos precisavam... a noite ainda seria longa... Muita conversa, muito abraço, algumas risadas e histórias contadas, divididas entre irmãos... cada um contava um pouquinho do que viveu com ele. Eu nunca havia estado com meus 2 irmãos ao mesmo tempo... e o mais raro ainda, tê-los sob minha proteção, dormindo abaixo do mesmo teto, os 3. Não tinha sono, mas meu corpo doía... a manhã seguinte ainda seria brabeira... marquei com Zuleika de chegar cedo ao IML. Mas os meninos não queriam dormir, mas fiz valer a autoridade de irmã mais velha... é preciso descansar, todos! E entre o sono e o despertamento vi meu pai no corredor, em frente a porta do meu quarto e eu disse: o que está fazendo aqui, Cancão? Ele respondeu: estou aqui porque meus filhos estão aqui... Mas você não pode estar aqui... tá bom, eu sei, mas deixa eu olhar mais uma vez... e pude vê-lo, olhando pra mim, dormindo, logo, no quarto de TV ele olhou o Victor e no terceiro quarto, ele olhou o Waltinho e foi andando devagarzinho, e desapareceu no ar. Ele nunca fez menção de unir os 3 filhos, foi ausente como pai, teve uma existência vazia nos 59 anos de vida. E ainda assim, os filhos choraram a morte dele. O abacaxi foi exaurido pelo tempo, Cancão. Ele foi nosso pai, mas não foi nosso amigo, foi nosso bandido... Mas a Dudedéia do Papou vai continuar orando por você, Cancão. Receba minhas orações, boas energias... eu não sei porque foi assim, mas Deus me mostrará um dia. Eu tenho certeza disso. Eu fiquei ao seu lado, não por obrigação, mas porque algo me impulsionou a isso. Seu enterro foi cantado pelos seus filhos. O Hino da Brigada Paraquedista, uma das poucas coisas boas que você nos ensinou... foi da maneira que você pediu... só não pude lhe dar o dia de sol, pois isso, eu não tinha como fazer. Procure a luz, vá de encontro a ela, busque a paz que você precisa para encontrar a clareza de espírito e as verdades necessárias para seguir na sua caminhada. Um dia, todos nós nos encontraremos. Eu não chorei naquele dia, não chorei no dia do enterro... fui chorar uma semana depois... sozinha. Meu coração doeu ao ver o Waltinho retornando à Recife e acabou de se quebrar quando o Victor retornou suas atividades no quartel e foi pra casa. Enquanto meus caçulas estiveram comigo, fui fortaleza. Eu queria guardá-los comigo! Mas há 1 mês estamos mais próximos; falo diariamente com Waltinho, com Victor e minha mãe. A dor aproxima as pessoas, mas a vida segue, a vida nunca deixa de seguir seu curso... e seguiremos até onde Deus assim o desejar. Fiquem em Paz!

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